segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Saramago.

A gente não pode mais se ver. como assim? assim, simples: não podemos mais nos ver. você ficou louco? quando a gente se vê tudo muda: parece que nada está fora do lugar. e isso não é mais um motivo para a gente se ver? não, não é, porque isso aqui que a gente tá vendo não é real, só parece bom. espera, estou perdida. o que é existe é o mundo cão lá fora, os garotos do bar do lado, o teu vizinho, teu ex namorado. você tá maluco? você já me perguntou isso. 

Miguel levantou-se da cama enrolado no lençol gelo. maria continuou ali sentada, jogada entre os travesseiros estupidamente fofos. 

Maria, isso tudo é um erro: aliás, fomos erro desde o início. miguel, você tá maluco. para de repetir isso, maria. não, miguel, você está louco sim, como podes tu te privares de algo tão desumanamente humano? eu não sei, maria, mas isso aqui não é real, eu e você não somos reais, há coisas que esperam por nós lá fora e se voltarmos juntos jamais seremos miguel e maria: seremos nós, e quando formos nós, não seremos nunca mais eu e você. 

Maria coçou os olhos e encarou o resto da maquiagem na ponta dos dedos. Mesmas pontas que passearam por ele minutos antes… 

Não vou te implorar nada não. maria, vê se me entende. miguel, isso aqui não é uma das tuas músicas, nem um dos teus curtas bocós. é só… eu e você. e isso não te assusta, não, maria? eu não me assustei quando você invadiu minha casa, porque haveria eu de me assustar agora?

Os dois param. Miguel começa a se vestir. Maria balança a cabeça e joga a cabeça nos travesseiros, que abafam graciosamente seu movimento. 

A gente não pode mais se ver, não pode. não tem outro jeito. 

Miguel repetiu isso mais algumas vezes como se só assim pudesse completar os passos de amarrar os cadarços do seu all star de couro. Ele se dirigiu a porta do pequeno quarto que fedia a mofo e tinha tanta poeira que era possível ver exatamente por onde o raio do sol de final de tarde entrava pelas venezianas de madeira. Ela levantou-se e, antes de fechar a porta nas costas dele, despediu-se, como sempre:


Tudo bem, a gente se vê. 

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