domingo, 12 de outubro de 2014

Maria sem sal.

Aparecem umas letras brancas no fundo preto. Nome do diretor, da atriz cafona e do protagonista galã. Parece um filme do Woody Allen mas não é. Toca uma música sem letra, uma guitarra meio crua, quase como se soasse como cordas soltas simplesmente vibrando, sem muito sentido. Mas é animador, estranhamente encorajante. O mocinho caminha numa rua larga de paralelepípedos, com umas árvores velhas de tronco robusto, uns carros vermelhos, pratas e pretos estacionados ao longo da via. Parecia os fundos de um bairro charmoso da zona sul carioca, tipo Copa ou Botafogo. Se é que isso existe. A cena segue.

É noite. Sereno. Mas o rosto do protagonista é meio confuso, penumbra. Olha pro sobrado onde o flerte furtivo mora. Maria sem sal. Não entendia o que estava fazendo frente àquela porta azul. Bateu uma mão na outra, umas cinco, seis vezes. "Ô de casa!˜, não achou a campainha. A luz do segundo andar estava acesa. Sentiu-se vitorioso. De novo, mais umas palmas. Vestia uma bermuda beje, uma blusa listrada branca e azul marinho. Se ajeitou. A luz da saleta, no andar debaixo, acendeu-se. Viu a sombra do pequeno corpo de Maria no voal da janela. Não era formosa, a Maria. Seus peitos eram medianos e não tinha bunda nenhuma. "Dá pro gasto", ele pensou, com um sorriso no canto da boca. Ouviu a chave entrar na fechadura e o clique do destranque. Excitou-se; animou-se; só faltou esfregar as mãos como um vilão de desenho animado. Maria sem sal abriu a porta e escondeu-se atrás dela. Ele subiu o primeiro degrau. Uma música clássica tocava ao fundo. Chopin? Sei lá. Bota isso no mudo. O seu cabelo castanho que ia quase até os ombros estavam bagunçados, meio molhados, com uma das madeixas recém cortada derramada bem sobre seu rosto. Ele subiu mais um degrau, esgueirando-se. Ela vestia um pijama de tirar o fôlego, até pra ela. Tecido fininho, rosa bebê, com renda no decote e na barra do shortinho.

"Tava me esperando?", ela não respondeu. Botou o cabelo atrás da orelha. Seus olhos mel reluziam graças ao luar. Que brega. Ela sorriu, sem graça, sedutora sem saber, atrás da porta. "Perdeu a língua? Deixa eu achar...". Ele subiu os degraus restantes que nem um gato fugindo do banho. Empurrou a porta para um lado e puxou Maria e seu corpo esguio pela cintura. Puxou-a para si. Em si. Ela com a mão em seu peito quente, atordoada, não sabia se queria aquilo, mas não parecia errado. Empurro-a pra dentro e a jogou no sofá, tão pequena, Maria.

"Acho... que... achei...", disse ele, entre um beijo e outro. A música do início voltou a tocar, no volume máximo. Acabou a história de violino angustiante. E se enroscavam mais um pouco no sofá também azul marinho da sala minúscula. A garota já sem fôlego e ele querendo mais, passeava com as mãos pelo corpo da menina, por dentro do pijaminha, o perfume doce já era quase masculino e ele perguntou-se se ainda não era cedo demais para o cheiro de ambos terem se misturado tanto. Cabeça dele à mil. Maria parecia quase inerte comparada a excitação dele. Maria sem sal.

De repente, um barulho que vinha do alto das escadas. Não era baixo o suficiente para que ele achasse que era nada. Os dois pararam, ela se sentou sobre as próprias pernas no sofá e ele ajoelhado no estofado, quase em pé, perguntou, depois de um pigarro: "O que foi isso?"

"É que tem gente lá em cima"

"Espera, você tá me falando que seus pais tão em casa e a gente dando amasso no sofá?"

"Não. Meus pais não moram comigo"

Manuel gelou. "Alguma amiga sua, então...?"

"Não. É que eu estava acompanhada mesmo"

As palavras de Maria não eram complicadas de se entender. Ainda assim. Custou alguns segundos a Manuel, para que ele entendesse. Olhou para as próprias mãos e encarou a boca ainda vermelha de tanto atrito. Ela estava com um dos dedos sobre os lábios, o que lhe dava um ar sedutor de falsa inocencia. Ah, Maria sem sal.

"Acompanhada? Entendi."

A música parou bruscamente. Manuel começou a juntar as peças. Ninguém estaria acordado àquela hora, com a luz do segundo andar acesa, com aquela roupa e teria aberto a porta tão rápido e estaria com tão pouca cara de sono. Maria sem sal?

"Tudo bem", ela disse.

"Tudo bem?", ele pensou. "Mas que..." Ninguém ali estava apaixonado. Talvez o cara de lá cima. Não Deus. O cara na cama dela mesmo. Caraca, Maria.

"Bom, eu acho que eu vou indo, então", disse, meio desconsertado, ajeitando a roupa, coçando a nuca quase que freneticamente, bagunçando os cabelos castanhos ao invés de arrumá-los. Maria sem sal!?

"Tudo bem", ela repetiu, "eu te levo até a porta"

"Não, eu... tá. Ok. Vou lá então, Maria", disse, sem saber se dava dois beijinhos, um abraço ou outro amasso. Olhou de novo para ela e percebeu que o tecido era meio transparente. Maria sem sal uma ova.

"A gente se fala, então", disse ela enquanto Manuel descia os degraus meio de lado, olhando para ela, com a boca encostada na mão que mantinha a porta meio aberta.

"É, a gente se vê, sei lá", disse Manuel, se arrependendo instantaneamente. "Que tiro no pé", pensou.

Voltou a tocar a música barulhenta. Alta, conforme ele conta nos paralelepípedos quantos apertos deu em Maria. Sem sal? Sem sal e sem graça estava ele agora. Metido a cineasta, o longa tinha virado um curta: só uma garota, só um azul marinho, só um sofá, só uma música. Bem barulhenta.

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