Era o nosso aniversário de namoro. Casados há cinco anos, a verdade é que muitos casais simplesmente se esqueciam dessas datas que, por algum motivo, acabavam se tornando menores. Sempre discordei disso, mesmo tendo caído nesse buraco. Nos dois últimos anos, o dia quinze de fevereiro tinha passado em branco.
Não este ano. Por algum motivo, assim que virei o primeiro mês do novo milênio, a data saltou-me aos olhos, como uma surpresa. Depois que casamos, nunca mais comemoramos o dia 15. A gente até lembrou, no início, mas era só isso. Fiz as contas: já somávamos oito anos juntos, fora os outros de algo que as pessoas cismavam em dizer que era mais do que uma simples amizade.
Era engraçado pensar no tempo que já fazia. A relação se transforma, torna-se mais consistente e "madura" - alguns gostam de chamar assim, eu acho que isso é sinônimo para comodismo, no entanto, não deixa de ser verdade! É assim que as pessoas funcionam!
De qualquer forma, me levantei. Você estava jogado ao meu lado, na mesma roupa com que chegara do trabalho na noite anterior. A camisa social aberta e amassada, os sapatos sociais jogados no pé da cama. Era chato imaginar que você queria ter feito outra coisa da vida. Ter virado ator, sei lá. Às vezes eu me culpo um pouco por isso, sabia?
Eu te afaguei os cabelos, te dei um beijo na bochecha amassada e me levantei. Acho que você nem sentiu, você estava bem apagado. Não ia fazer café especial. Acho que nem tinha vontade de falar nada. Uma parte de mim só queria que você também soubesse e pronto, a gente seguiria com nosso dia normalmente.
Era terça-feira de carnaval e a gente nem tinha conseguido aproveitar. Não que a gente ligasse pra carnaval, mas parecia uma boa ideia ter um tempo livre. Era a minha primeira folga desde o Natal. A sua então, nem me lembro. Um dia na cama bastava.
Fui até a cozinha. O cheiro de café fresco perfumou o ar, talvez isso tivesse te acordado. Quando eu despejei o leite para misturar na sua xícara, você perguntou se eu já tinha lido o jornal que estava na minha mão. Terminei o caderno de esportes e te entreguei. Você me deu um sorriso que eu não via há muito tempo, me beijou e sentou ao meu lado. Você também não fazia isso há muito tempo. Com tantos "você não fazia isso há muito tempo" eu achei, por um momento, que talvez você tivesse se lembrado. Como sempre, você me surpreenderia.
Sabe o que eu estava pensando? Lembra o lugar da nossa primeira conversa, você perguntou, eu pensei em dar um pulo lá hoje. Eu sorri por trás do segundo caderno d'O Globo, você nem viu. Então, continuou: eu sei que já são quase onze, mas tomando café à essa hora, eu acho que a gente só vai ter fome mais tarde. Aí a gente passa a tarde lá... era tão agradável, lembra?
Era claro que eu lembrava! Como eu poderia esquecer!? Tudo bem, talvez eu não lembrasse da cor da sua blusa, do tênis que você usava, mas eu lembrava do seu olhar e do seu sorriso envergonhado. Eu lembrar do dia já era um avanço, mas não lembro da hora. Não vou me desculpar por isso, tá? Parece que faz tanto tempo e, ao mesmo tempo, comparado a tudo que temos planejado, parece que foi ontem!
Eu concordei e você exclamou alguma coisa sobre o flamengo, alguma contratação estúpida na capa do caderno de esportes. Só Deus sabia como eu agradecia por você ser flameguista. A melhor coisa que fiz foi ter largado aquele vascaíno antes de você. Meu avô, em algum lugar, se orgulhava de mim por isso. Todos os maridos e esposas dos netos eram tricolores, menos você. Acho que vocês dois teriam se dado muito bem.
Eu voltei meus olhos para o segundo caderno. Gilberto Gil estava na capa, falando alguma coisa que, provavelmente, ninguém entendeu. Mas, como era Gil, era a capa.
Terminamos o café, trocamos os jornais (a gente sempre deixava para ler o de Economia e País na sala, não sei porquê?). Eu me levantei, fui pro banho. Quando eu sai, ainda de toalha cinza, você estava sentado na beirada da cama, de bermuda vermelha, me esperando. Me olhou, de novo, como não fazia há muito tempo - acho que não era desinteresse, não você só andava muito cansado mesmo. Respirei fundo, tremendo como se tivéssemos 17 de novo. Todo mundo dizia que era cedo para namorarmos sério, para casarmos. Fugi tanto de acabar como minha mãe, casada aos 26, que me casei aos 20. Olha que loucura!
Eu me aproximei. Você me pegou pelos quadris, beijou minha barriga por cima da toalha fofa. Olhou para cima, sorrimos. Eu gosto dessa imagem na minha cabeça. Você me puxou. Eu cai em cima de você, cada perna de um lado. Você beijou meu pescoço e sentiu cada pêlo do meu braço arrepiar. Sorriu. Você adorava perceber as respostas dos seus estímulos, né? Seus braços travaram nas minhas costas, me fazendo prisioneira.
Meus cabelos curtíssimos da franja pingavam no seu rosto, que eu beijei ternamente. Seus olhos estavam mais claros com a luz do sol que invadia brutalmente o quarto naquela manhã - castanho quase negro se tornando mel. Aliás, brutal era aquele beijo que você me deu, que começou tão tranquilo. Rapidamente, a toalha molhada pareceu desgrudar do meu corpo e você a quis jogar longe, como sempre fazia. Eu a segurei. Vamos, eu disse, senão a gente não sai da cama hoje.
Você sorriu, maroto, porque sabia que era verdade. Pulou para fora da cama, jogou a bermuda em cima de mim e ligou a água do chuveiro. Com a porta aberta, o vapor invadia o quarto. Eu mandei você fechar para não molhar o tapete, você riu mais uma vez. Você estava estranha e especialmente alegre naquela manhã.
Nos arrumamos. Eu coloquei um vestido azul que você me dera na Páscoa anterior e um casaco um pouco mais escuro, um presente espontaneo da sua mãe, tão bem entedida do meu guarda-roupa. Aliás, eu gostava muito de me dar bem com ela. Você botou sua bermuda "beje de passeios casuais do final de semana" e uma blusa qualquer que estava na gaveta. Você não vai sentir frio, você me perguntou, e eu balancei a cabeça, dizendo que, se fosse o caso, eu tinha alguém para me aquecer.
Saímos de casa já era quase uma hora; a gente sempre enrolava um pouco, não vou dizer de quem é a culpa, se não isso poderia ir por horas. A rua movimentada naquele carnaval parecia esperar ansiosa a formação dos primeiros blocos do dia. Uma parte de mim era tão externa àquilo tudo que eu mal lembrava do porquê dos bloquinhos de carnaval do bairro... pensando bem, acho que ninguém sabia!
Morando aonde morávamos, estávamos perto de qualquer lugar. Não era diferente do nosso destino. Demos uma volta pelo bairro, decidimos caminhar um pouco até o Jardim Botânico, até que passasse um ônibus que nos deixasse na Urca. Você se lembra? Acho que era o 512... Veríamos no visor de qualquer forma.
O dia estava bem agradável. Sabe quando as condições climáticas estão de acordo com o nosso interior? Dizem que isso é o dilema dos poetas - que é um problema quando eles se sentem numa tempestade e o sol brilha lá fora. Como se o nosso humor dependesse do sol! O vento que batia, vindo do Jardim Botânico, também ajudava a deixar o ar mais leve, é verdade. Não sei se você também se sentia assim. Depois de uma boa caminhada, tomamos o ônibus que nos servia e, bem rápido, chegamos na Urca.
A Praia Vermelha tem um charme maravilhoso, não tem? Não é só porque ficamos pela primeira vez lá, não. Mas ela é tão pequena, tão na sua... Não sei. Para a nossa sorte, não tinha quase ninguém ali naquele início de tarde. Passamos por aquele parquinho de crianças ali da frente e nos sentamos não na areia, mas no calçadão de concreto, com as perninhas penduradas para fora. Você segurou minha mão e eu encostei minha cabeça no seu ombro.
Se o Sol não tivesse se movendo sobre as nossas cabeças, eu podia jurar que o tempo tinha parado um pouquinho ali. Eu podia ouvir nossos corações batendo, tal como daquela primeira vez. Por um momento, eu achei ter saído de mim e isso me assustou um pouco. Eu vi os nossos últimos oito anos e bem, eu não vou mentir.
Eu achei que seríamos outra coisa.
Meu amor, as coisas não foram fáceis. Tudo bem, a gente deu sorte, saímos da faculdade que a gente mal sabia se queria ter feito e nos enfiamos em "bons trabalhos". Você que tinha mania de pôr aspas. Seus pais foram bons o bastante para nos dar aquele apartamento como presente de casamento. Devemos muito a eles por isso.
A gente bota comida dentro de casa e eu amo o lar que temos, você sabe disso. Eu não o trocaria por nada. O bairro é fantástico. Eu sei que é cedo para termos filhos. Estou louca para irmos para Nova York, mas não sei se essa viagem acontece no final desse ano ou do outro. Por que esses planos nunca sairam do papel?
Mas o que me assustou, não foi nada disso aí. Em termos concretos, não seríamos nada além do já somos. Isso é incrível. Mas e o "eu e você"? Meu amor, meu medo de casarmos era esse. De que dias como hoje se tornassem especiais. Tudo bem, eu sei, amor é idealizado, casamento nunca é como no cinema. Mas éramos tão inconvencionais! E somos tão jovens para sermos tão apegados à uma rotina dessas!
Não, não, não. Eu me recuso, meu bem. Não podemos fracassar assim. A culpa também é minha. Eu sei que não temos brigas, problemas concretos. Mas eu não posso te perder metaforicamente. Não posso dormir com um estranho - não que você já tenha se tornado um.
Tô falando do nosso dia a dia. É, não é isso que temos? Os cafés da manhã, os finais do dia, os finais de semana... Nosso trabalho é tão exaustivo! Não podemos esperar por datas comemorativas para sermos amantes! Meu amor, não podemos esperar por fins para sermos como éramos antes.
No meio da minha experiência quase extracorpórea, nos vendo sentados à beira mar, você exclamou: engraçado, como as coisas estão mudadas! E mal você sabia que a metáfora servia tão bem pro que eu estava pensando... Você continuou: É areia, é mar, é rocha, eu sei. Mas... parece outro lugar, não parece?
Você me puxou para mais perto naquela tarde de Fevereiro. De alguma forma, o Sol evaporou meus medos e duvidas. No final das contas, não importava muito a situação da obra da cozinha ou com qual família passaríamos o próximo Natal.
Se eu tivesse entre teus braços, eu ainda podia ser sua namorada, noiva, mulher. E entre eles, eu sei que não haveria nenhum outro lugar onde eu queria estar. Olhando para aquelas pedras que o mar batia incansavelmente há, pelo menos, oito anos, eu sabia que o nosso amor jamais viraria areia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário