quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Caras prostradas da Ayrton Senna.


Tinha um senhor sentado com a cabeça encostada no vidro da janela do ônibus em que eu voltei pra casa na noite passada. Eram oito horas e seu olhar era vago. Mas não era um vago no sentido de "não estou pensando em nada": era uma espécie de "quero ir pra casa" melacólico, quase nostálgico, solitário. E "casa" no sentido de um lugar seguro e não de moradia. 

Parecia que aquele senhor de olhos míopes tinha passado a vida inteira sentado naquele lugar do ônibus, esperando o ponto certo pra descer. Ao mesmo tempo, não parecia querer descer, parecia estar ali pra fugir de alguma coisa, rumo a lugar nenhum. Não parecia cansado fisicamente, nem entediado. Muito pelo contrário: parecia estar pensando em algo denso, forte. Seus pensamentos pareciam ser tão altos que transbordavam no olhar, me incomodavam de alguma forma. Seu semblante era tranquilo mas parecia que a sua cabeça era um turbilhão e seu peito afundava em saudade. 

Imaginei que a esposa dele devia estar esperando-o em casa, com a janta quase pronta. Sua filha mais nova devia estar pra casar e ele estava perdendo um pouco o seu anjinho. Seu filho mais velho devia estar trabalhando em Curitiba fazendo mais dinheiro que ele jamais achou que faria, mas de alguma forma a vida tinha separado os dois de uma forma que, infelizmente, não era só física. Eram problemas cotidianos. Era mais do que isso também. 

Aquele senhor tinha entrado naquele ônibus e o engafarramento tinha se tornado um divã para suas saudades. Não era exatamente arrependimento, mas os carros passando mais rápido do lado de fora do vidro fazia parecer que ele podia ter tomado decisões mais justas com os seus sonhos, se ele não tivesse tido tanta pressa de correr para pegar aquele ônibus. Talvez se ele tivesse pego o outro, esperando quarenta e cinco minutos no ponto da Nossa Senhora de Copacabana, ele não estaria naquele engarrafamento. Tudo bem, talvez não conseguisse um lugar pra sentar, mas pelo menos não teria encostado sua cabeça no vidro e não estaria pensado no que não foi, julgando o que conquistou.

A vida segue. Que nem os carros do lado de fora, que nem a mão do guarda de trânsito que mandava a fila de automóveis perpendicular seguir. Que nem o engarrafamento que simplesmente faz um nó e passa, simplesmente, como se nada tivesse acontecido alguns quilômetros à frente. 

Algum tempo depois, o senhor percebeu que eu olhava intrigada para ele. Assim que nossos olhos se ligaram, eu desviei os meus, mas não por timidez: eles pareciam mais confusos ainda vistos de frente. Um lugar vagou e eu sentei-me. Mexi meus pés cansados, chequei o relógio: mais de meia hora no mesmo lugar. Suspirei. Fechei os olhos e quando os abri, minha cabeça também estava encostada no vidro do ônibus. 

Lembrei do olhar do senhor que tanto me incomodava. Me perguntei se aquilo ia me marcar pra sempre. Pensei que a gente corre pra pegar o ônibus mais vazio, pra tentar conseguir um lugar, pra tentar fugir do trânsito, pra chegar em casa mais cedo possível. Olhei para as incontáveis luzes de freio dos carros pretos, cinzas e brancos a minha frente. Vi a Ayrton Senna parada a minha frente. Olhei à minha volta, vi dezenas de pessoas cansadas, ansiando para chegar em casa. 

A preço de quê? De que adianta a pressa? De que adianta planejar e cronometrar cada sonho e objetivo que a gente tem, se a vida tem a sua forma de coordenar as coisas com os mil e um acasos e coincidências? Não é simplesmente fazer as pazes com o destino e deixar nas mãos dele, mas a julgar pelos olhos daquele senhor e do clima de cansaço naquele ônibus, eu poderia jurar que nada adianta as pessoas se martirizarem tanto quando as coisas não dão certo. Nem sempre é pra ser, às vezes é melhor que nem seja. 

Concordo: não é o tipo da realização filosófica que consola. 

Além do mais, quem disse que o raio do senhor não estava simples e naturalmente... cansado?

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