domingo, 1 de dezembro de 2019

Piloto automático.

ela ainda está aqui usando roupas de segunda mão. eu não sei para onde o tempo foi. as fotografias parecem retratar outra vida - uma que não é minha. os tempos se tornaram estranhos - o quanto brigaríamos por conta de política? as roupas estão cada vez poindo mais. o timbre da voz é algo esquisito para se lembrar. a tecnologia ajudou com os áudios de whatsapp - nunca achei que iria darplay tantas vezes em um "tô esperando a van lotar, daqui a uma hora tô em casa". teve um dia que você só não voltou. e essa ausência - agora eu me sinto culpada por ter me acostumado a ela, tão rápido - permanece. digo, me acostumei, mas não me habituei, se é que isso faz algum sentido. digo que ela ainda está aqui porque talvez no fundo eu saiba que ela queria que fosse por pouco tempo. aprendi que éramos tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes - as ironias da vida. fecho o olho e penso o que você faria no meu lugar. fecho o olho e imagino a vida com você aqui - é muito estranho que ela já pareça imaginável. eu secretamente sabia que você se iria antes dela, só não achei que ia ser tanto tempo antes assim. você a deixou com um caminhão de tempo pela frente - e eu não sei lidar com esse tanto de tempo. eu sinto que vivia com alguém que estava louco para encontrar outro alguém que não está mais aqui. e agora, isso se repete, mas a matemática está ganhando do lado daí. que fraqueza que isso me dá. talvez se eu não tivesse tanto medo de dor física, já teria cortado meu próprio pescoço - mas fico pensando na sujeirada que alguém teria que limpar. pois é. depois que você lida com a morte você fica calculando seus passos para não deixar trabalho pra ninguém. não, não, eu não acho que você seja um trabalho. já fiquei com raiva, sim, porque eu tenho dificuldade em não achar que você queria partir. e é isso o que mais me dói: de saber que eu não fui capaz de te manter por perto. não adianta eu te dar uma atualização do que aconteceu por aqui. você sabe. sabe dos apertos, dos medos - das conquistas também. a vida é terrivelmente inevitável sem você. e será sem ela. mas que buraco que cava no meu peito, imaginar uma vida - inevitável - sem os três amores da minha vida. eu não quero ser a última. eu não quero morrer sozinha. a constatação é perigosa. desculpa, eu não deveria estar falando disso agora. extravaso porque é impossível falar disso com alguém - não é incompreensão - é falta de tato, de jeito. é um assunto abrupto. minha ladainha do "já fez seguro funeral para sua família" é uma forma de dizer "se cuida, porque a vida vira um caos de repente e você não quer se preocupar se o cartão vai passar". a vida se tornou cão, caos. mas de alguma forma, demos a volta por cima. não sei por quanto tempo pois a sensação é que tudo vai desabar em algum momento de novo. a vida é feita de ciclos. este recomeça - mas em quatro ou cinco anos - pode, catapluft, cair na minha cabeça, esmagar meu pulmão de novo, pesar sobre minha cabeça. eu não sei se aguento outras porradas dessa. ela ainda tá usando roupa de segunda mão e isso me mata. mando ela ir ao médico. falo para ela andar, pegar um sol. sabe que ela ainda não foi à piscina? posso escutar você ouvindo "eu pago esse condomínio caríssimo para vocês não usarem a estrutura?". me pego repetindo. eu quero ela feliz, quero ela sentindo a vida, degustando a vida, se é que isso faz algum sentido. mas a gente não pode provar nada por ninguém, não pode sentir a dor por ninguém. eu falei que ia cuidar dela, mas como é difícil. e as culpas, os medos, os anseios. a ausência ecoa em mim, as ausências, aliás. tudo se esvai tão rápido. os risos, os choros, o gozo. acaba. temos todo tempo que existe no mundo - nem mais, nem menos. a finitude nessa infinitude é destrutiva. eu não sei mais que vida é essa. o botão do piloto automático quebrou e eu acho que essa neblina pode revelar uma montanha imponente e fatal.