"Querida Camila,
Antes tarde do que nunca, volto a te escrever. Demorou muito para eu catar meus pedaços e me reconstruir. Parece meio simbólico, mas Deus sabe como ser abandonada nos quebra. Não só o coração, mas nos tira a vontade de comer, de sorrir, de respirar. Foram longos meses enfiada debaixo de um coberto meio ao verão carioca. Espero que você me perdoe pela demora.
Não é com facilidade que eu te escrevo esta carta, mesmo que a gente tenha dito que talvez botando para fora, as coisas fiquem mais leves. Ficaram mais leves, é verdade, com o passar do tempo, porque não há nada como ele: o tempo. É um dos maiores clichês, mas só ele tem o poder de fechar determinadas feridas e nos fazer entender que há males que não são males. São bênçãos.
Há muito você me perguntou o que haveria de ter acontecido entre eu e Murilo, mas a verdade que eu só entendo como as coisas se desenrolaram agora, meses depois. Era bem simples: Murilo nunca gostara de mim e eu servi como um trampolim e passatempo até que fosse o momento certo para ele voltar com sua amante. Era claro em seus olhos quando falava dela, mas cega, não vi. Ou vi, talvez, e preferi fingir que não, porque seria minha confirmação de estar certa. Às vezes, querida Camila, não há nada pior do que estar certa. E como quis estar errada.
É bem verdade que Murilo e eu éramos disfuncionais pelo simples motivo de que quando um não quer, dois brigam pra cacete. Só dá para fazer um relacionamento funcionar se ambos quiseram, e isso não era o caso. Eu podia ter me virado do avesso e o resultado seria igual.
Foram meses para entender que eu não era maluca de verdade; tampoco estava inventando sarna para me coçar. Quando a gente começa a duvidar da própria sanidade, é aí que as coisas se envenenam. A culpa corrói, despedaça. A cada "você chora demais", "você se preocupa demais", "você sempre coloca o argumento de volta em cima de mim", um golpe novo era acertado em cheio na minha cara. Metaforicamente eu estava deformada e não sabia. Sai do relacionamento feia, detestável. Até hoje é um pouco difícil entender como deixei o poder abrasivo da falta de carinho permear minha pele por tanto tempo. Eu não conheci o verdadeiro amor de Murilo, não porque ele não demostrava, mas porque ele não existia. Alguns diziam que éramos jovens. Não acredito que isso seja desculpa.
E por mais que as coisas acabem, como tudo nessa vida sempre chega a um fim e há um novo começo em seguida, é muito difícil acreditar que alguém que te acordava mentindo "eu te amo", seja capaz de te levar a loucura. Quando o 161 passava na rua que eu atravessava, eu tinha vontade de me jogar na frente dele. Não por causa de saudade, mas porque me sentia estupidamente traída pelo meu senso crítico.
Falando em senso crítico, Murilo era extremamente crítico. Reclamava que eu só usava roupas soltas e tons de terra, mas achava estranho se eu colocava maquiagem ou usava uma camiseta rosa. Me dizia na cara e eu me recolhia envergonhada. Mas sua amante era magérrima, esbelta, linda, bem do jeito que ele queria que eu fosse e me vestisse, mas me criticava quando tentava ser. Toda vez que lembro dela, rezo a todos os deuses para que ele não tenha a feito passar pelas mesmas coisas que me fez passar. Ela é uma garota incrível, espero que ela saiba disso.
Murilo criticava minha escolha de livros, minha falta de letras maiúsculas em textos e me julgava, quase aterrorizando, como se ter uma banda pop punk dos anos 2000 no ipod fosse algo realmente crucificante. E a cada crítica ele me fazia sentir como se eu não merecesse o seu amor (inexistente). Era, de fato, desconfiável que Murilo não gostasse de fotos ou demonstrações públicas, principalmente na frente de algumas pessoas. A primeira coisa que ele pediu quando nós começamos a nos relacionar, era sigilo absoluto.
Foi difícil sentir raiva de alguém que eu tinha com tanto carinho. Eu achava que isso não era necessário para deixá-lo ir. Achava que raiva era um sentimento mesquinho. É, é sim. Mas Camila, sem amor próprio, eu te digo, é impossível levantar da cama. Murilo havia levado todo o meu. Me levou minhas músicas, meus filmes, meus versos. Não havia nada meu sobrando. Ele era um péssimo amor. Péssimo. Podia ser um ótimo amigo, mas foi um lixo de amor.
E talvez também por conta de toda a amizade que eu nutria, foi muito difícil dar tchau para tudo de uma vez. Ainda estranho quando eu encontro com Murilo e ele me diz que eu não mudei. Que atrevimento! Ele não sabe da metade do que eu passei, do que eu conquistei sem ele. E não teria conseguido com ele. Murilo me levava aos extremos só para me ver queimar. Achava que ser intensa é um defeito ameaçador. Ele pisava em meus nervos e toda vez que eu tentava desabrochar. Cortava-me pela raiz. Só queria saber do corpo e nada demais. É claro que se eu fosse tão ruim assim, ele poderia ter ido embora. Dei-lhe tantas chances. Murilo batia o pé, dizia que me amava e que era pra sempre. Quando eu passei a acreditar, finalmente, foi quando ele decidiu ir embora.
São buracos diferentes que se cobriram apenas com a certeza de que Murilo era nocivo. Meus amigos, na prática de não tomar lados, decidiram que eu pressionava demais. Era um discurso estranhamente parecido com o de Murilo. E assim, a culpa recaiu sobre mim, mesmo que meus amigos não tomassem lados. Foi a segunda vez que redobrei minha atenção em relação a minha sanidade. Isso foi quase o fim.
Com as pílulas, as mãos tremiam e eu não conseguia mais escrever, parte do motivo pelo qual não consegui te escrever. As noites eram profundas, os dias eram nebulosos. Não lembro de muita coisa. Só lembro que doeu.
Sei que agora passou. Mas que medo que me dá de passar por isso de novo, Camila. Quantos outros Murilos existem por aí, escondidos sob a máscara de bons rapazes, de boas famílias, que seguram sua mão quando você está com cólica, mas acabam com você em meios a conversa sobre um futuro não distante. Quantos Murilos são caras muito legais, muito divertidos, mas que te rebaixam como se você fosse a pior pessoa face da terra, no ponto que você nem sabe direito como eles fazem esse tipo de coisa? Há Murilos que estão namorando amigas minhas e eu gostaria que elas soubessem disso. Há Murilos que agridem psicologicamente, fisicamente, todos os dias e somos vistas como "inocentes ou jovens demais".
Hoje, torço dia e noite para que o amor-próprio seja considerado como o mais importante deles todos, mas que jamais seja comparado ou confundido com egoísmo. Agora que Murilo se foi de verdade, tudo parece uma grande ficção. Não há registros, não há rastros. Apenas uma estranha e vaga memória que me parece um pesadelo. O arrependimento está lá, mas não assombra. Apenas me lembra para que toda vez que eu encontre com um Murilo novo, eu faça o que deveria ter feito da primeira vez: fugido para as colinas.
Apesar do tom de pesar, te escrever esta carta me parece como uma carta de alforria. Acho que estou livre. Obrigada."